Como um Juiz absolutamente justo e reto pode de alguma forma justificar
(declarar justo) um criminoso absolutamente culpado e condenado? Como qualquer ser humano pode escapar da condenação do inferno? O próprio Deus nos diz que aquele “que justifica o perverso e o que condena o justo abomináveis são para o senhor, tanto um como o outro”.[1] Suponha que um pai chegue em casa e encontre sua família assassinada. Depois de uma perseguição agonizante, ele consegue capturar o assassino. Quando o criminoso finalmente se apresenta diante do juiz, ele é inquestionavelmente considerado culpado pelo crime. Mas quando chega a hora da sentença, o juiz faz a seguinte declaração: “Este homem cometeu um crime terrível, mas eu sou um juiz profundamente amoroso e escolho declará-lo inocente. Na verdade, eu o declaro justo diante da lei”! Tal juiz seria corretamente considerado um criminoso tão grande quanto o assassino! Ele “justificou o perverso” e “é abominável para o senhor”.
Mas se isso pode ser considerado verdadeiro mesmo à luz da justiça humana, quanto mais verdadeiro não é quando tratamos da justiça de Deus? Como os filhos perversos e culpados de Adão podem algum dia ter a esperança de se encontrarem diante de Deus, o justo Juiz do universo? Como Deus poderia de alguma forma “justificar o ímpio” sem ele próprio se tornar abominável? “O que disser ao perverso: Tu és justo; pelo povo será maldito e detestado pelas nações.”[2] Como Deus pode dizer a pecadores como nós, “Tu és justo”, sem violar o seu próprio caráter? Como Deus pode de alguma forma salvar-nos dele próprio e de sua própria retidão e justiça?
Imputação
Só existe uma única resposta para esse dilema. Alguém precisa pagar pelos pecados dos pecadores. A justiça precisa ser satisfeita. Ou ela será satisfeita pelos sofrimentos do próprio pecador eternamente no inferno, ou ela terá que ser satisfeita por alguma outra pessoa no lugar do pecador.
Maravilha das maravilhas! Esse “Alguém” veio! O Senhor Jesus Cristo “carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados”.[3] “Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.”[4]
Como essa grande transação acontece? Para compreendê-la, precisamos considerar a pequena palavra “imputar”. Ela também é traduzida como “reconhecer”, “contar”, “considerar” e “imputar”. Podemos começar a entender o que ela significa ao atentar para uma passagem da carta de Paulo a Filemon a respeito do retorno de seu escravo Onésimo: “Se, portanto, me consideras companheiro, recebe-o, como se fosse a mim mesmo. E, se algum dano te fez ou se te deve alguma coisa, lança tudo em minha conta”.[5]Aqui, Paulo instrui Filemon a “lançar em sua conta” [literalmente, “imputar”] qualquer débito que Onésimo pudesse estar devendo a Filemon. Essa não era realmente uma dívida de Paulo, mas Paulo, por sua própria vontade, tomou para si aquele débito, e ele foi lançado em sua conta!
Agora, essa mesma palavra e suas variações são usadas para se referir a pecado. Por exemplo, a Bíblia diz que “o pecado não é imputado (“lançado em nossa conta”), não havendo lei”.[6] Novamente, em Romanos 4, Paulo diz: “Mas, ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça. E é assim também que Davi declara ser bem-aventurado o homem a quem Deus atribui (“imputa”) justiça, independentemente de obras: Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas, e cujos pecados são cobertos; bem-aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado”.[7] Que transação gloriosa! Nossos pecados não são imputados a nós, porque foram imputados aCristo, e, aceitando-os como se fossem seu próprio débito, ele os pagou completamente!
O Coração do Evangelho
Essas realidades estão no próprio coração do evangelho. Elas são expostas pelo apóstolo Paulo em Romanos 3.21-26, uma passagem um tanto complexa que se torna clara à medida que compreendemos o significado da imputação discutida acima:
“Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que creem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus.”
Aqui, Paulo declara que Cristo morreu para pagar o nosso débito de pecado a fim de que Deus pudesse “justificar” pecadores e ao mesmo tempo permanecer “justo”. Ao longo do Antigo Testamento, os pecados foram meramente “deixados impunes”, o pagamento de sua culpa sendo postergado ano após ano, até que viesse o Cordeiro cuja morte os levaria verdadeiramente embora.[8] Durante todo esse tempo, parece que Deus estava sendo injusto, visto que ele justificou homens (como Abraão e Davi) sem que a justiça fosse realmente satisfeita. Portanto, era necessário que Cristo morresse “publicamente”, manifestando abertamente a justiça de Deus para que todos a vissem, satisfazendo-a completamente na cruz pelos pecados cometidos. Nesse sentido, Cristo morreu não somente para justificar homens, mas para justificar Deus! Sua morte na cruz vindicou e manifestou a justiça absoluta de Deus ao justificar seu povo. Como uma “propiciação” (i.e., um sacrifício que remove a ira) pelos nossos pecados, Cristo tira de sobre nós a ira judicial de Deus. Somos “justificados gratuitamente” (a justificação é absolutamente de graça para nós), “mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (a justificação custou muito caro para Deus). Somos justificados ao receber a “graça para a justificação”,[9] “justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo”.[10]
Você ainda está carregando o fardo de sua culpa e seus pecados? Você ainda está sob a ira de Deus? “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!”[11] “Haverá uma fonte para remover pecado e impureza”.[12] “O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo o pecado”.[13] Não importa quão terríveis sejam os seus pecados, eles não são nada comparados ao valor infinito do sangue de Cristo![14] “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”.[15] Venha a ele! Ele o convida e também ordena que venha; você não precisa temer estar sendo presunçoso ao vir: “Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida”.[16] Venha a ele! Tome a água da vida! Lance seus pecados sobre ele e confie nele como quem levará seus pecados. “Crê no Senhor Jesus e serás salvo”.[17]
[1] Provérbios 17.15
[2] Provérbios 24.24
[3] 1 Pedro 2.24
[4] Isaías 53.4-5
[5] Filemon 17-18
[6] Romanos 5.13
[7] Romanos 4.5-8
[8] Hebreus 9.15
[9] Romanos 5.17
[10] Romanos 3.22
[11] João 1.29
[12] Zacarias 13.1
[13] 1 João 1.7
[14] 1 Pedro 1.18-19; Atos 20.28
[15] Romanos 5.20
[16] Apocalipse 22.17; Mateus 11.28
[17] Atos 16.31
Esse artigo é um trecho do livro “Justificação e Regeneração”, publicado pela Editora Fiel. Disponível em: http://voltemosaoevangelho.com/blog/2016/02/o-coracao-do-evangelho/